segunda-feira, 31 de março de 2014

Exterior I

"VELHO_(...) Creio que estava a ponto de me pedir algo; depois, não ousou e deixou-me
bruscamente. Mas só agora penso nisso...E eu não tinha percebido nada... Ela
sorriu como sorriem os que querem se calar ou têm medo de não serem compreendidos.
Esperar, para ela, parecia ser apenas sofrimento...seus olhos não estavam límpidos
e quase não me olharam..."

Interior, Maeterlinck

Matei afoito a formiga cuja picada na pélvis me acordou. Detesto quando faço isso. Explico. Estou deitado sobre a grama do quintal sob um sol consideravelmente forte e quando me movi pra matar a formiga, não só descobri outras sobre mim, e gemi e fui mais seco e menos trôpego, como meu corpo ardeu pela dobra da pele sobre pele pra tirar a bicha e as outras. Estou queimado parece agora de modo ridículo, rosa e dolorido só na face ventral. Visto apenas uma cueca. Não é das piores, o que torna a situação menos terrível. Reparando bem, não sei se é minha, o que suspende indefinidamente o efeito de não ser das piores.

Lembro-me de deitar ali, à noite. Mas não sozinho. Teria sido demais até mesmo pra mim. Estava muito quente, o céu sem nuvens, e resolvi deitar no quintal e olhar pra cima, as estrelas e tal, e chamei eles e acho que tinham algo mais importante pra fazer. Todos. Então de fato fiz isso. Fui deitar sozinho no quintal. Mas vestido, não teria tirado a roupa ali numa boa. Levei vodca numa jarrinha de cristal. Boa companhia. Até certo ponto pelo menos. Meu plano não era dormir ali. É isso que detesto quando faço: não saber que seguir o curso de uma ação implicará logo logo, caso não faça o que seja pra evitar, seguir o de outra completamente diferente. Quer dizer, ficar deitado olhando o céu negro e as estrelas estendido por horas quer dizer que eu estarei logo logo, caso não me levante e vá embora, deitado olhando apenas o céu claro e o sol e recebendo a irradiação solar alheia a que eu esteja ali por engano.

Veio alguém durante a noite. Estava escuro então não sei quem. Já dormia e acordei quando me despia a camisa, teve que estender meus braços acima da minha cabeça e o cocuruto bateu no solo gramado ao fim. Os pontos luminosos no negrume. Não distingui um rosto. Fechei os olhos para permanecer ignorado. Tirou minha bermuda, minha cueca. Deitou em cima de mim. E só. Dormi de novo.

Acordei com as formigas. Tirei de mim todas que achei enquanto vesti as roupas largadas perto. Dormira abaixo da janela da cozinha e agora ouvia sons de dentro. Água fervendo talvez para o café e refogavam já alguma coisa talvez portanto já perto do almoço e conversa em longas pausas. Moderadamente felizes. Fui com a jarra quase vazia mas contendo o bastante até a piscina. Enorme e sem água. Estava para dizer seca, mas não é bem o caso. É repleta de terra e porque chova quando chove e porque não raramente chova, fica úmida e pequenas plantas já surgem e um pequeno ecossistema já se forma ali. Bichos minúsculos. Isso se repete em vários outros pontos da casa. Fungos em infiltrações. Pendem meus pés da borda de pedra quente. Olho acima. Terrível deserto este céu sem nuvens. O calor aflitivo torna tal beleza jamais simples mas complexa. Vodca goela adentro como modo senão bom ao menos útil de não ser dragado por tão nada anódina beleza. Termino o gole, esvazio a jarra.

Agora a terra da piscina. Ah. Há outra coisa ali no fundo.

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