Bom, foi por causa de um sonho. Eu costumava ter um sonho que se repetia várias vezes. Era mais pra um pesadelo, pra ser honesto. Começou logo depois que eu li uma poesia esquisita, eu comecei a ter esse sonho, pesadelo, né... A poesia falava de terra, de bicho apodrecendo, coisas assim, tinha um verso que era sobre a teta da terra... é, da teta da terra mesmo, tipo, mãe-terra amamentando. Isso. Bom, eu li essa poesia, não sei de quem é, e fiquei meio assustado, ela falava muitas coisas estranhas, falava de doenças venéreas lá pelo meio, só coisas assim, nojentas e pútridas e doentes, sabe? E daí comecei a ter esse sonho, pesadelo, né, que estou ali naquele mato próximo, naquele terreno em volta, e estou só de cueca, com frio e descalço em cima daquela terra suja pra caralho que tem ali, com medo de pegar alguma doença terrível, leptospirose, peste, bicho-do-pé, diarreia, não sei, essas coisas de mendigo, então eu vou até a casa, têm uns brilhos que aparecem aqui e ali e eu sei que não devo ligar pra eles, que eles estão ali pra me enganar, é o mundo em volta tentando fingir alguma coisa que eu não devo dar atenção, ignorar e seguir reto até a casa - e então eu vejo o palacete, imenso na noite, está de noite. Eu caminho até lá, ainda com frio, mas suando, sabe quando você joga futebol em dia frio e aí meio que está com calor por conta do exercício, mas se tira a roupa fica com frio por causa do vento no suor? Era essa a sensação. E eu sigo até o palacete, e entro, e vejo que o lugar é imenso mesmo, um palácio mesmo, mas todo abandonado. E eu sei que tenho que subir a escada, e eu subo, não sei quantos andares eu subo, e quando chego num andar lá, não sei qual, não pensava nisso no sonho, eu vejo a maria, e ela não parece me ver, está de costas, andando com um pé na frente do outro, como se se equilibrasse numa corda, mas está só de calcinha, ela não veste mais nada, está só de calcinha, que aliás é uma calcinha de renda que eu já vi ela usando, meio azul-piscina, enfim, ela está andando assim de costas e não me vê e eu não quero que ela me veja, porque quero aproveitar aquele momento e porque ela iria brigar comigo, ficar puta, sei lá, e fico assim meio parado, olhando pra ela seminua andando olhando pros pés, e, num certo momento, eu percebo que ela já percebeu que eu estou ali, ela não chegou a olhar pra mim, mas já percebeu que eu estou ali, e nesse exato momento ela para de andar daquele jeito e vai pra um quarto no fundo, então eu sigo ela, porque parece, do jeito que ela vai, que ela está meio me chamando, ou só porque é o que eu quero fazer mesmo. Mas quando chego no quarto não vejo ela. A cama está vazia, as cortinas fechadas, o quarto tem cheiro forte de mofo, a cortina está muito mofada, o chão está comido pelos cupins, cheio de farelo de madeira, pisar nele parece andar em cima da sujeira de anos, e está repleto de revistas largadas, roupas e panos velhos, num dos cantos restos de comida: feijão com arroz e frango, tudo velho, apodrecendo em cima da madeira há anos, cheirando mal, cheio de vermes compridos andando e no meio dessa comida velha e podre tem um olho. Um olho humano muito nojento. Eu começo a ficar com medo, o cheiro está mais forte, tudo parece estar mofado, e eu começo a ouvir vozes que vem de trás da porta do banheiro, mas a porta está trancada, eu nem preciso tentar abrir porque sei que está trancada, não dá pra entender o que as vozes falam, é uma voz só, pra ser mais exato, mas não sei o que ela fala, fala tudo embolado, não dá pra entender, eu suo muito e sinto que pisei numa poça, olho e vejo que tem água vindo por debaixo da porta do banheiro, como quando eu era criança e brincava com a céu de encher o banheiro, alagava tudo e nossos pais só percebiam quando a água passava por debaixo da porta, daí eles batiam na porta e falavam pra fechar a água se não ia ter que parar de tomar banho, e depois a gente até aprendeu a colocar o tapete no vão da porta do banheiro pra vedar por mais tempo; e então eu fico com medo pra caralho, começo a me sentir mal, me sentir meio sem roupa só de cueca e percebo que a maria está na cama, debaixo do lençol, meio escondida, acho que ela não sabe que eu entrei no quarto no fim das contas, eu entro sorrateiramente por debaixo dos lençóis sem ela me ver e vou devagar encaixando por trás dela, tipo de conchinha, sabe, e tenho uma sensação dupla de imenso prazer e de um pouco de nojo, porque a cama está imunda, dá pra sentir a poeira debaixo da coberta, os ácaros, os bichos, uma coisa úmida mais embaixo, mas eu não me importo e vou me encaixando mais com a maria, passando o braço por baixo dela e o outro por cima, abraçando na altura dos peitos, claro, né, e fico com um tesão fodido, ela não se move muito, mas quando se move é pra se acomodar melhor, então beleza, e daí começo a tirar a calcinha dela e ela se vira pra me beijar e não é mais a maria, é a céu e eu não sei o que fazer, porque meio que não parece importante na hora, mas com certeza meu interesse pela situação diminuí drasticamente e todo o desconforto da sujeira da cama, do fedor do lugar, dos bichos mortos nojentos, da água que vai melando todo o chão, da voz sibilante, do mofo que cresce na cortina, essas coisas todas parecem bem mais graves agora e me atrapalham bem mais em focar na situação, a céu vem a toda pra cima de mim e eu deixo, mas começo a engasgar, ela fica com uma cara meio jocosa, como quem diz, não vai dar conta?, como quem duvida, ou como quem saca que eu vou broxar, e eu percebo que estou broxando, mas tipo, não tem a ver com falta de virilidade, macheza, nada, é só porque tá tudo errado, aquilo me incomoda, mas a céu sobe por cima de mim e eu não consigo me levantar, nem sombra de tesão, e eu me sinto seriamente asfixiado, todo aquele mofo, e cheiro de cigarro, e ela insiste em meio que me sufocar pra eu sentir mais forte o orgasmo, mas eu não quero mais aquilo e a gente meio que começa a brigar, e eu sou mais forte, claro, então eu viro por cima e inverto a situação e começo a sufocar ela e pego um travesseiro e sufoco ela pra valer, ela se debate, eu estou suando a vera, é muito esforço, e eu sei que se ela morrer não é de verdade, sabe, tipo, eu meio que sei que é um sonho, embora eu não pense isso na hora, mas sinto que a morte não é tão grave quanto morrer de verdade, e então não me importo, eu sufoco ela até a morte e ela se debate, me bate, e eu espero ela parar de se mexer, e, quando ela para eu tiro o travesseiro. Mas não é ela que está debaixo. É essa menina. L.
Sempre que eu sonho isso, eu meio que já sei o que vai acontecer, como se seguisse um mesmo roteiro que eu já conheço mas é inevitável, e eu meio que quero segui-lo até o fim, principalmente a parte do deitar com a maria, e eu meio que fico olhando pra ela incessantemente pra ela não virar a céu sem que eu veja, mas, de uma forma ou de outra, ela sempre vira, e sempre termina do mesmo jeito.
Mas isso não quer dizer nada, né?
sábado, 17 de maio de 2014
No Embaço
Eu tava na casa da Céu e do Marco Polo. Ele e a Maria tinham
descido pra comprar bebida. Preciso de outros amigos. Faltou luz. Os dois
tinham saído há uns vinte minutos. Mas depois que a luz faltou eles demoraram ainda um bom tempo. Ficamos eu e Céu no escuro. Ela disse que ia catar uma lanterna.
Emprestei meu celular pra ela ver por onde andava. Voltou com uma lanterna
acesa. Devolveu meu celular. Ela perguntou se eu já tinha escutado Dirty
Projectors. Eu falei que não. Ela disse que eles tinham um disco com a Bjork
que era muito bom e que ia botar pra eu ouvir. Lembrei a ela que não tinha
energia. Ela falou que tinha um disc man. Pensei caralho alguém ainda tem isso.
Ela me botou pra ouvir. Beautiful Mother, que é a que ela mais gosta junto com
uma outra aí, a penúltima. É meio bonita e meio bizarra: tem a ver com a Bjork
mesmo, eu digo. Ela diz que não é música dela. Eu digo ah. Ela então põe a mão
no meu joelho. Estamos sentadas, uma de frente pra outra e ela põe a mão no meu
joelho. O polegar roça indo e vindo. Penso ih caralho. Estou olhando pra baixo.
A música vai acabando. Ela me chama. Levanto a cabeça devagar. A lanterna está
no lugar do seu rosto. Só vejo um clarãozinho que apaga seu rosto e me dói os
olhos. Fico muda ainda que quase fale. O rumor do fone na base do pescoço. Ela não diz nada.
É o polegar roçando, o silêncio, o rosto apagado e a dor nos olhos. Isso dura
algum tempo. Ultrapassa o constrangimento e vira outra coisa. A luz volta,
coisas estalam, sons voltam a vibrar. A cena de repente é ridícula e
inofensiva. Eu rio. Ela ri com algum atraso. Apaga a lanterna e a deixa na
cômoda. Maria e Marco Polo aparecem, com Smirnoff e suco. Ficaram presos no
elevador. Marco faz alguma piada sugerindo que eles talvez tenham trepado no
elevador. Maria o empurra rindo e diz ah para. Eu deixo claro que me interesso mais no disco que neles. Céu ainda ri de alguma coisa.
domingo, 11 de maio de 2014
Am I Really Dying? (II)
Em casa um dia chovia bem forte. Minha mãe não sabia que eu
não tinha saído então faria sentido ela chegando me ver encharcada da chuva. De
início nada fiz, constatado isso. Então me vesti, pus meus tênis e fui pra baixo
do chuveiro. Luz aguda. Virei a torneira.
A água fria vinha e eu tirava os cabelos dos olhos,
espalhava-os na cabeça. Tentava manter os olhos abertos. Virei a torneira. Pus
as mãos na barra e torci a blusa. A água espatifou no chão do box. Torci.
Saí do box e apertei o interruptor. Agora sim. Virei a
torneira. Tirei os cabelos dos olhos. O queixo tremia. Torci a blusa. Agora
mais água por todo canto. Torci. Puxei a blusa até a nuca. Capuz em boca e
olhos.
Chorei. Se me lembro. Água por toda parte, difícil saber de
onde. Virei a torneira.
Bati a porta da frente. Esperei minha mãe. Diria que esqueci
minha chave. Torci a blusa e fiz uma poça farta. Funda como não adivinharia.
terça-feira, 6 de maio de 2014
Am I Really Dying? (I)
CLOV_Me disseram, O amor é isso que você está vendo, isso
mesmo, veja bem agora como (...) é fácil. Me disseram, A amizade é isso que
você está vendo, nem mais, nem menos, não precisa continuar procurando. Me disseram,
O lugar é aqui, pare, levante a cabeça e repare quanto esplendor. Quanta ordem!
Me disseram, Vamos, você não é um animal, pense sobre essas coisas e vai ver
como tudo ficará claro. E simples!(...)
Fim
de Partida, Samuel Beckett
vi o Amor numa foto. Ideologicamente circunscrito sem Eros
nu.
Contra o vidro ela fora vestido dela vivo escurecido da água da
chuva a cor viva do vestido encharcada se rosa então agora tipo um rubro a
água levando abaixo as cores do rosto, supõe-se uma beleza: qualquer coisa da
ordem do vejam esta mulher incontrolável, catástrofe, cataclismo, erupção, depressão
- isto porque do lado de cá, mais perto de quem está vendo, está este cara uma
barba nada a ver bem vestido cara de: eu na realidade acho que não sei lidar
com isso: não sei lidar com isso: quer dizer: com esta mulher - eu racional ela emotiva - aí você pensa peraí isso não faz
nenhum sentido. não se aproximar não querer saber. caga na latinha sem dar na vista
bem vestido o cara é bonito então ninguém liga pro que ele pensa ou pra que ele
pense, contanto que em algum momento possam chupá-lo, comê-lo, etc.
A Laura Palmer disse “é tão terrível a facilidade que eu
tenho em fazer os homens gostarem de mim” e Foster Wallace que é deprimente quando
você descobre o quão uma pessoa que você admira é fácil de manipular.
E a vergonha de nela ter me visto umas vezes já: de eu já
estive aí num desses lugares nisso que eu achava de certo modo lindo e algo
levado por uma sensação amor: era isso amor: alguma música no fundo ou à frente
e eu privada de ter que pensar a respeito do que fosse agora já nenhuma reflexão
e somente isso. A merda é que na não reflexão deixava essa infecção ideológica
adentrar: a ferida adensava alargava abria mais e eu numa boa ouvindo ou
dizendo eu te amo ou variações um sistema econômico mundial integrador ao qual
eu me punha indiferente pra poder dizer eu te amo em paz achando assim que
também eu de certa forma fazia frente: indiferença fingida: o amor é seria de
algum poder contra (o axioma de 67 dos Beatles é das coisas mais reacionárias
que existem) mas que essa matança intrínseca a tudo esta carniça feita coração
das coisas está no amor é amor um amor está em tudo está em inspirar expirar virar as
costas é adorá-la como quem já a adorava adorará – a primeira e última
concessão.
Estou cansada. Quanto mais nojo tenho dessas coisas é porque
sei o quanto grudaram a mim. Podemos foder e discutir. Não é que será mais
simples. É que o verbo ser será de mais difícil emprego. Terrível a beleza que
não torce as vísceras. Tétrica a que é agradável.
Tenho quinze anos, dei primeiro há dois. Quem sabe tivesse me
refreado, houvesse visto Beleza Roubada antes. Agora não me trinco tanto em ter
que dar já. Antes urgia, mas não mais. O que rolar rolou e é isso aí. E se o Marco
Polo entrar numa, ele que se foda. A Maria tá aí. Eu não.
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