terça-feira, 15 de abril de 2014

Foto

É uma cena estúpida mas é isso aí.
Há dois do lado de dentro e dois do lado de fora.

Os do lado de dentro fazem assim:
                                                   Ele está com uma câmera no parapeito da janela na direção dos dois do lado de fora. Alguma concentração, ou porque sabe muito bem o que quer ou porque não faz ideia. Ela está ao seu lado e conversa.

É sua?
O quê?
A câmera.
É.

Ela se cala.
Ele retoma pra que não necessitem da companhia um do outro.

Você não vai sair na foto?
Eu?
É.
Você vai?
Eu vou, vou coisar o timer.
Vai ter que sair correndo.
É, mas cê vai sair?, tem que ir agora.
Agora?
É.
Tá.

Os dois se calam.
Veem somente o que é enquadrado pela janela, a saber:
                                                                                   Ele lá fora segura um vaso vinho pesado com uma planta de caule extenso e folhas largas. Ela lá fora fala alguma coisa pra ele, seja o de fora ou o de dentro. Ela está numa posição ruim, a cabeça pende entre as coxas e o sangue sobe ao cérebro, aliás, desce ao cérebro. Ela de fora não registra não ser ouvida pelo de dentro e o de fora move pouco os músculos da face por achar que está sempre na iminência da foto e portanto não fica claro se ele registra o que ela disse ou se está simplesmente fazendo outra coisa qualquer quando acontece de por exemplo a sua mandíbula se manifestar.

É você que tem uma casa de praia?
Tenho o quê?
Não sei se é você que tem.
O quê?
Casa de praia. É que falaram que você tem, é você que tem?
Ah é, mais ou menos.
Como mais ou menos?
Não é na praia, é perto da praia.
Mas isso é casa de praia.
É porque tem casa que é na praia e a minha não é.
Mas é casa de praia.
É tipo você ter uma casa na Barata Ribeiro e falar que é casa de praia.
Claro que não.
É, sim.
Não é. Nada a ver.
Tá.
Porque é tipo férias.
Quê?
Férias. Tipo: casa de praia = férias! Sacou?
Veraneio?
Hã?
Veraneio.
É, tipo casa no meio do mato ou na serra. Sítio, fazenda.
Sei.

Novo breve silêncio, amargo e/mas ligeiramente conciliatório. Ela retoma.

É no estado do Rio?
O quê?
Sua casa.
Não.
É onde?
Espírito Santo.
Ué, tem praia lá?
Tem, cê vai sair na foto?
Vou, tem que ir agora?
Já era pra ter ido.

Os do lado de fora eu já falei mais ou menos.

Mas eles fazem assim:
                                Ele os braços já começando a tremer pelo esforço de segurar o vaso. Ele está fazendo isso porque acharam que ia ser uma ideia engraçada. Talvez até seja. Eu nem acho. Mas deve ser porque não participei de quando eles tiveram a ideia. Coisa meio quando tá todo mundo bêbado menos você. Todos devem de fato estar se divertindo, mas você tem certeza de que você não está. Fato é que está segurando durante muito tempo o vaso. Mas o faz com estoicismo, o rosto rígido e surpreendentemente inexpressivo. Assustadoramente, aliás. Ela se alterna em gritar para o lá de dentro e falar qualquer coisa em volume mais baixo para o de fora. Por conta da pose (está com as pernas bem separadas e a cabeça entre as coxas, as mãos se apoiam no chão, mas a ideia é levantá-las no momento da foto, ou seja, ela não supõe como ele ali fora que a foto está prestes a ser tirada, mas sim que há algo protelando o momento decisivo e que haverá tempo para se preparar devidamente e sem pressa), sua voz sai esquisita.

pequena lista de neuroses urbanas

- mudar de calçada quando avistar um homem com mais de 1,80m
- mudar de calçada quando avistar uma mulher com menos de 1,40m
- trancar e destrancar a porta 4 vezes
- deixar as portas sempre trancadas
- nunca pular um degrau
- evitar fazer linhas diagonais andando na rua
- não passar embaixo de um pombo
- não passar em cima de bueiro
- não olhar nos olhos
- entre 23h40 e 00h01, não estar na rua
- comer o pão pelas bordas
- ficar parada enquanto a fita rebobina
- não ultrapassar a faixa amarela
- não fumar o último cigarro do maço
- nunca aceitar doce de estranhos
- nunca abrir a torneira da direita
- nunca se direcionar a alguém que falar russo sem antes pedir licença
- tapar os ouvidos se a música repetir o mesmo acorde por mais de 5 vezes
- limpar embaixo da unha todos os dias
- limpar atrás da porta todos os dias
- não atender ao interfone antes do segundo toque
- não atender ao telefone antes do segundo toque
- não encarar as pessoas da vitrine
- não sentar no banco alto do ônibus

domingo, 13 de abril de 2014

Da composição e da sede

Pude sentir a água nos meus pés, nas canelas, nas pernas até as panturrilhas.  De olhos fechados eu via toda aquela água, limpa e transparente. Eu via uma ou duas folhas verdes dançando a dança das águas. Eu ví aquela abelha na borda. O movimento dos meus pés gerava um movimento lá em baixo que subia e fazia bolhas na superfície. Ela refletia o céu e o chão. Uma vez alguém me disse que a água não tem cor, que ela reflete o que vê. Pude ver o vento quando ele criava forma na água e nas minhas pernas molhadas. Eu u vi quando soltei os cabelos, caídos nos ombros e eles foram junto com ele. Pus as mãos na água, fria, e passei nos cabelos e no rosto, descobri que a água também reflete o vento. Pensei em contar isso pra alguém. Mas. Eu vi refletidas ali as mãos, os braços, os cabelos, o tronco, mas não via o rosto, o rosto não, não conseguia ver, olhava com atenção mas o rosto me escapava. Na turbulência do vento, nas bolhas do pé.

Abro os olhos.

Eu vejo a piscina vazia, milhares e milhões e bilhões e incontáveis folhas no fundo. Alguns insetos mortos. Abelhas talvez. Eu vejo meus pés no ar. Solto os cabelos, que ficam caídos nos ombros, e só. O seco me molhou. A falta de água fora fez com que a minha água de dentro quisesse sair, pelos olhos, pela testa, pelos braços, pernas, pés, cabelos e sexo. Preciso dela, do seu reflexo, daquele rosto. Da calma que o molhado me trás. Sede. Acho que vou contar isso pra alguém.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Segui alguém


Saí da unirio levemente com presa. Mas ok. Precisava pegar o ônibus do metrô, o 513. Quando cheguei na praça que têm na frente da faculdade e consequentemente na frente do ponto de ônibus, vi o meu, o 513, no ponto. Comecei a correr, mas fui interrompida pela lembrança de ter pagado 20 reais para um amigo, dinheiro que estava devendo desde o carnaval, assim, eu não sabia se tinha dinheiro para o ônibus conexão, parei, continuei andando, só que mais lento. O ônibus foi. Eu tinha dinheiro. Fiquei ali por um tempo, sentindo que chegaria atrasada, mas ok. Talvez nem tanto, otimismo baby. Peguei o ônibus, ele abriu as portas antes de chegar a Mena Barreto, pois o transito por ali depois das 18:30 é, sério, impossivel. Andei até o metrô, e assim que passei da roleta o trem lá vinha, corri as escadas e entrei no vagão. Fui tranquila. Cheguei a estação Largo do Machado, onde desci e vi uma menina/mulher (mulher) descer também, de outro vagão. Eu estava indo para o teatro Cacilda Becker, teatro exclusivamente para apresentaçoes de dança. A mulher entrou na minha frente por uma questão de organização e só isso. subimos as escadas, e alí, bem alí pensei: parece que ela esta indo para o mesmo lugar que eu. Segui meu caminho normalmente, sem que a presença dela me afetasse ou me fizesse mudar de direção, a cada esquina ou virada eu ficava apreensiva pra saber se ela iria aonde eu esperava que fosse. Acho que a essa altura eu já estava seguindo ela, se ela mudasse de direção como eu poderia ir para o meu destino? Estava indo, agora, atrás daquela nuca onde a blusa fazia um V e o cabelo preso em coque deixava a mostra a pele. Seu jeito me pareceu de bailarina, talvez eu estivesse sendo influenciada pelo caminho e o destino, o meu destino. Continuamos. Se eu estou indo, e ela esta indo, eu estou a seguindo? Continuamos. Quando a porta do teatro começou a se aproximar senti que era decisivo, ou vai ou raxa, sei lá. Ela virou, entrou no teatro. Naquele momento parei de segui-la. Eramos duas mulheres/meninas andando até o hall.

ps: depois, em uma roda de ciranda nossos olhares se cruzaram. reconheci ela, de algum lugar.