terça-feira, 25 de março de 2014

Frank Silva (1950-1995), ele fez Twin Peaks. Olhar que rolou numa visão da Sarah Palmer.

Só uma hora aí que eu saquei que ela tava falando comigo porque quer dizer antes de sacar eu tava falando qualquer merda só pra não calar a boca e uma hora eu entendi que tinha alguém falando junto e às vezes falando nas pausas que eu fazia pra respirar porque eu ainda não tinha aprendido a como simplesmente falar sem parar e também evitar pronomes aliás evitar não, mas suprimir definitivamente, o que sempre terminava, quer dizer, falar pronomes terminava, por me localizar no tempo de maneira cronológica e no espaço e dar uma referência pra outra pessoa de por exemplo quem eu sou ou era ou gostaria de ser e eu desse modo assim ainda saía por aí dizendo aproximações tipo “eu” “ela” “nós” perguntava que horas eram e tudo o mais e ela percebi que tava falando comigo e de fato interessada em alguma coisa então dei a entender que entendia e comecei a deixar que ela falasse umas duas três palavras e aí eu ia e respondia alguma coisa, qualquer coisa. Às vezes ela não terminava e eu falava por cima dela quer dizer por cima da voz dela. Só então entendi o meu incômodo com aquela merda toda. Tava a outra lá toda desmaiada aliás ainda só descansando foi só depois que a gente soube que ela em algum momento desmaiou, ou melhor, então eu não sabia se ela tava ainda descansando ou já desmaiada ou desmaiando mas foda-se porque fosse como fosse ela tava lá na cadeira e o cara abanando ela e soprando o rosto dela quer dizer imagina só ela lá recebendo todo aquele hálito na cara ou imagine-se você lá sem sentidos ou perdendo os sentidos sem falar dos perdigotos garoando nos cílios lábios pálpebras e ele tava lá e ela tava lá e eu tava aqui e ela outra aqui comigo falando comigo. Ele olhou pra mim. Nós dois eu e ela aqui enfurnados no sofá. Um cheiro miserável de antigos habitantes quadrúpedes e de toda a saliva podre deles, a genitália pingando mijo e o cu com restos de merda pendurados ou amassados mas agora aos poucos o cheiro não só não mais incomodava como ficava cada vez mais difícil perceber que ele tava lá enfim como sempre é com cheiros você sabe. Sem falar do modo como invadia nossas roupas tanto as que a gente tava usando ou já tinha usado quanto as que a gente ainda ia usar porque afinal o cheiro é da casa. E ele olhou pra mim. De repente ele resolveu olhar pra mim. Aí fodeu. Daqueles olhares que nego resolve parar e começar a significar pra caralho entendeu do tipo pam se liga em como eu sou capaz de concentrar os meus olhos parados na tua cara e isso quer dizer que eu estou sendo muito intenso aqui na concentração o que quer dizer que eu quero dizer alguma coisa pra além ou aquém das palavras e aí você fica uau olha só fulano sendo intenso e tipo uou isso tá reverberando em mim de uma maneira realmente significativa e eu estou admirado e/ou com medo dessa porra toda e quem diria que fulano fosse capaz de tamanha intensidade e de um gesto tão intenso e de me causar tanta tensão intensa do tipo no meu corpo e não uma parada intelectualmente tensa mas um olhar concentrado e intenso que ficou mexendo nos meus intestinos quer dizer é claro que é muito cartesiana essa maneira de descrever a sensação mas você me entende agora e por hoje basta e essas merdas. Sem falar que puta que pariu não excluo a ideia de que ele teve um certo lapso de ficar doidão e se ele ficou de repente querendo significar tanta coisa é só porque ele sacou que tudo aquilo era grave e importante e resolveu aparentar gravidade e importância então deu aquela de ficar me olhando parado e intenso e antes que eu pudesse evitar eu tinha calado a boca por mais do que eu quereria e ela outra aqui já tava falando pra caralho querendo superar minha marca de falador de falação ininterrupta ou sei lá alguma porra dessa. A discussão era sobre o carpete, quando tinham tirado o carpete, ela falou que ainda havia carpete como se eu também não estivesse naquela porra daquela casa junto com ela e os outros dois pisando em piso de taco todas as porras daqueles dias sem nenhum carpete à vista sendo que o máximo indício de que algum dia tinha existido alguma coisa parecida com um carpete por ali era uma marca ou o que parecia ser uma marca aliás, uma diferença em primeiro lugar tonal deixada pelo suposto carpete de existência dúbia: tinha diferenças de cores, tons e texturas entre dois tipos de pedaços do piso: um mais claro e limpo e conservado e outro mais sujo e escuro. Aí eu fiquei dividido entre não vou contrariar maluco ou quem sabe o maluco seja eu e não tenha marca nenhuma ou isso que eu penso que seja marca é simplesmente outra coisa e tenha um carpete na minha cara e eu não esteja vendo ou foda-se vou discordar dela e quem sabe ocupar o tempo com essa discussão até quem sabe intrigante mas de todo modo inútil e grato por que o silêncio não apareça e não escorra pra dentro pelos poros suar de revés e paralise meu coração. Ou talvez lamentar que ele não seja capaz disso. A essa altura aquela lá já provavelmente desmaiada. Não é impossível que o hálito e o cuspe a tenham feito desmaiar se bem que você sabe ela é dessas que desmaia por qualquer merda acho que pelo menos três vezes desde que tamos aqui, pelo menos três vezes tornadas públicas, sem falar daquelas que talvez ela tenha sofrido mas não contou pra justamente não ser retratada como eu acabei de retratar, como sendo aquela que desmaia e tal. Acho que isso faz sentido. Faz pra você?

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