3.
- 8 quartos, sendo que num deles tinha aquela mesa que me lembrou
uma que ficava no quarto da minha irmã naquele tempo antes da vizinha se jogar
pela janela. Minto, isso foi antes da casa ser reformulada, antes da violência,
quando chegaram as estacas de ferro que garantiriam a proteção e mais a frente,
por questão de futuro mesmo, um elevador que comportasse cadeira de rodas. Mas
ela já está recuperada. Ou 9 quartos? 10 quartos, todos vazios. Na sala, um
amontoado de cadeiras e um pano velho jogado por cima. Muito pó. Ser pó. Tava
todo mundo ali e mais alguém. Alguém na sauna. As empregadas, em dupla de duas,
almoçavam na cozinha – não que a cozinha fizesse parte da casa. Não sei quem. Alguém que não era da gente -
tô cada vez mais confusa. Mas quero ajudar. Desculpa. Você pode ligar pra minha
mãe? - escuta, tinham duas cozinhas, não sei porquê. Talvez antes fossem duas
casas… o que isso tem a ver? - devia ter todo tipo de bicho na piscina, menos
os aquáticos. Muitas moedas, abandonadas desde a infância – jogávamos moedas e
mergulhávamos de olhos fechados para procurá-las. Não tô te enrolando. Não tô
de fantasia. É que já não consigo desvencilhar a memória da narrativa. Lulu
sempre disse: cuidado para não acreditar na narrativa da memória e anular o
real. Aqueles azulejos não viam água há
décadas - você pode me dar um copo d'água? - você só quer o resumo da ópera,
né? é seguinte: eu não sei. - as cortinas arrebentaram quando a gente
tentou abrir. tecido podre. o mofo, em espanhol vira rançoso, talvez não exista
mofo lá, subia pelas paredes e inundava o teto com o mesmo cheiro que a carne
embaixo da unha da minha avó inundava a minha infância, e a piscina. - Tava todo
mundo junto e a Lu se separou do grupo? A casa nasceu da pedreira. Que chora. -
Quem? Ah, a Luli. Você que tem que dizer pra gente o que tá acontecendo. - Será
que você poderia me trazer um copo de água? - A gente achou que não ia ter luz
nenhuma e levou uma penca de vela, mas tinha. Uma luz esverdeada colada ao
teto. - Não tinha luz. - A gente só acendeu a luz e entrou. - Foi um acidente,
ninguém vai sentir falta daquela casa mesmo. Foram muitas gerações de uso do
fruto. Vão construir um prédio no lugar, uma garagem, um shopping, uma coisa
escrota dessas. - Acho que alguém trancou a gente lá dentro. - Vocês já
acharam a Lulu? - Será que você podia me dar um copo de água. Misturada, por
favor. - O calor invadiu o chão, como se tivesse carvão embaixo do taco.
Sinteco. Na cozinha azulejos misturados.
Dava pra ouvir a poeira da casa gritando desesperada. - Vocês acharam a
Lola? Tola. Toda. O padrasto dela deve tá preocupado. Não sei qual. - As chamas
escalaram a videira do centro da casa. Perto de onde sairia o elevador que
comportaria cadeira de rodas. - Ela é amiga da minha irmã. A gente não se fala
muito. Não falo muito. - Algum de vocês entrou naquela casa? Só a gente, né?
Então por que você não acredita quando eu digo que morava alguém ali! - Chame
os alpinistas! - Ela entrou correndo, com raiva, socou a parede. Fogo. Tinha
brigado com alguém. Terra. - Eu achava que a Lila tinha ido embora há muito
tempo. Água. - Você já ouviu de perto o
barulho que fogo vai quando tá mastigando os móveis? Ar. - Eu senti o cheiro da
minha pele queimada - Alguém gritou. Eu não sei quem. - Tudo vira pó. - Você
pode pegar um copo de água pra mim? Preciso engolir uns remédios.
Antioxidantes. – Eu tô perdendo o senso. E a paciência. Tô virando pó, porra.
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