sábado, 8 de março de 2014

3.

- 8 quartos, sendo que num deles tinha aquela mesa que me lembrou uma que ficava no quarto da minha irmã naquele tempo antes da vizinha se jogar pela janela. Minto, isso foi antes da casa ser reformulada, antes da violência, quando chegaram as estacas de ferro que garantiriam a proteção e mais a frente, por questão de futuro mesmo, um elevador que comportasse cadeira de rodas. Mas ela já está recuperada. Ou 9 quartos? 10 quartos, todos vazios. Na sala, um amontoado de cadeiras e um pano velho jogado por cima. Muito pó. Ser pó. Tava todo mundo ali e mais alguém. Alguém na sauna. As empregadas, em dupla de duas, almoçavam na cozinha – não que a cozinha fizesse parte da casa.  Não sei quem. Alguém que não era da gente - tô cada vez mais confusa. Mas quero ajudar. Desculpa. Você pode ligar pra minha mãe? - escuta, tinham duas cozinhas, não sei porquê. Talvez antes fossem duas casas… o que isso tem a ver? - devia ter todo tipo de bicho na piscina, menos os aquáticos. Muitas moedas, abandonadas desde a infância – jogávamos moedas e mergulhávamos de olhos fechados para procurá-las. Não tô te enrolando. Não tô de fantasia. É que já não consigo desvencilhar a memória da narrativa. Lulu sempre disse: cuidado para não acreditar na narrativa da memória e anular o real.  Aqueles azulejos não viam água há décadas - você pode me dar um copo d'água? - você só quer o resumo da ópera, né? é  seguinte: eu não sei. - as cortinas arrebentaram quando a gente tentou abrir. tecido podre. o mofo, em espanhol vira rançoso, talvez não exista mofo lá, subia pelas paredes e inundava o teto com o mesmo cheiro que a carne embaixo da unha da minha avó inundava a minha infância, e a piscina. - Tava todo mundo junto e a Lu se separou do grupo? A casa nasceu da pedreira. Que chora. - Quem? Ah, a Luli. Você que tem que dizer pra gente o que tá acontecendo. - Será que você poderia me trazer um copo de água? - A gente achou que não ia ter luz nenhuma e levou uma penca de vela, mas tinha. Uma luz esverdeada colada ao teto. - Não tinha luz. - A gente só acendeu a luz e entrou. - Foi um acidente, ninguém vai sentir falta daquela casa mesmo. Foram muitas gerações de uso do fruto. Vão construir um prédio no lugar, uma garagem, um shopping, uma coisa escrota dessas. - Acho que alguém trancou a gente lá dentro.  - Vocês já acharam a Lulu? - Será que você podia me dar um copo de água. Misturada, por favor. - O calor invadiu o chão, como se tivesse carvão embaixo do taco. Sinteco. Na cozinha azulejos misturados.  Dava pra ouvir a poeira da casa gritando desesperada. - Vocês acharam a Lola? Tola. Toda. O padrasto dela deve tá preocupado. Não sei qual. - As chamas escalaram a videira do centro da casa. Perto de onde sairia o elevador que comportaria cadeira de rodas. - Ela é amiga da minha irmã. A gente não se fala muito. Não falo muito. - Algum de vocês entrou naquela casa? Só a gente, né? Então por que você não acredita quando eu digo que morava alguém ali! - Chame os alpinistas! - Ela entrou correndo, com raiva, socou a parede. Fogo. Tinha brigado com alguém. Terra. - Eu achava que a Lila tinha ido embora há muito tempo. Água.  - Você já ouviu de perto o barulho que fogo vai quando tá mastigando os móveis? Ar. - Eu senti o cheiro da minha pele queimada - Alguém gritou. Eu não sei quem. - Tudo vira pó. - Você pode pegar um copo de água pra mim? Preciso engolir uns remédios. Antioxidantes. – Eu tô perdendo o senso. E a paciência. Tô virando pó, porra.

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