Meu
nome era o que meus pais pretendiam fazer pra homenagear o meu avô. Ele não
gostou disso porque tava vivo e porque na nossa religião quem tá vivo não pode
ser homenageado, a não ser que morra, deixando, assim, de tá vivo, passando a
tá morto, que na nossa religião é o estado de existência (que talvez se possa
chamar não-existência é bem discutível e, diria, errado) por excelência de
alguém homenageável.
Então
meu avô não gostou nada da ideia de ser homenageado achando assim que tava implícita
certa ideia de meus pais desejando a morte dele. Aí meus pais, assim como meu
avô tinha essa questão idiota da religião, meus pais também tinham a deles que
era de já que meu avô tava nessa pilha chata de não vou liberar meu nome pra
vocês usarem, eles não resolveram, como todos pra quem eu contei isso
concordaram que teria sido a coisa mais óbvia e razoável a ser feita,
simplesmente falarem ok, ok e darem outro nome. Resolveram insistir.
Tinha
uma parada de que eu seria o último filho da família, quer dizer, deles dois
(porque era de se esperar que à época da reprodução da nossa geração, minha e
do meus irmãos, a nossa prole poderia tranquilamente servir para homenagear meu
então possivelmente morto avô. Mas meus pais não só não podiam esperar como deviam
fazer eles mesmos agora. Se bem que pensando bem, seria ridículo se eles
impusessem que algum de nós dos filhos botasse nos netos deles o nome do nosso
avô. Aí nós é que brigaríamos com eles e nossos filhos homens seriam
aqueles-que-não-tem-o-nome-do-bisavô, e nós,
os-netos-que-não-homenagearam-o-avô), e aí eles queriam porque queriam
homenagear o meu avô, o que, pra ser sincero, não vejo muito motivo, ele não é
um velho extraordinário ou coisa parecida, mas um cara solitário, religioso e
pouco simpático e nada de uma espécie de vida brilhante como uma contraparte
compensatória dessa rabugice, do tipo quando falam que sei lá o Ibsen, por
exemplo, era hiper ranzinza, mas né, era o Ibsen, então foda-se. Ou o Heráclito. Não, o meu avô
era um dos vários de quem eu tava falando quando falava que família é uma
merda.
Então
quer dizer eu já vim ao mundo num meio duma merda escrota que nego quis botar
na minha conta, já quiseram me botar no meio duma rixa maluca com o meu avô
antes de eu sair do útero. O que me faz pensar que comigo ele talvez fosse
ainda mais rabugento que o normal. Porque claro que os meus pais botaram o nome
dele em mim. Isaac. Após todos os argumentos razoáveis e concessivos e
diplomáticos eles poderiam simplesmente falar que eles iam fazer o que eles
queriam e foda-se. Podem ter ameaçado ele de alguma coisa também, não sei. Não
falávamos muito sobre isso. A não ser pra eles mostrarem como era importante
lutar pelo que se acha que é certo e como meu avô não sabia o que tava fazendo,
como era importante abalar esses enrijecimentos da religião e que ela imiscuía
em todos, e sempre terminava num clima conciliatório de somos uma bela família esclarecida
e amamos os nossos e homenageamos os patriarcas, e minha mãe acrescentava “até
mesmo os rabugentos” e todos riam e o cachorro latia e recebia do meu pai
tapinhas nas costelas e ele comentava que até o cachorro achava o vovô
rabugento e mais uma vez todos riam. Ou seja, quando eu tive idade pra de fato
estranhar tudo isso eu sabia que minha família tava para sempre perdida numa
ego trip sinistra. Eu falava ok e ia pro meu quarto.
Agora,
por que meu avô se demoveu da convicção dele é que eu não sei. Que aliás por
ser de uma onda religiosa e tal nem era tão dele quando uma parada
transcendente mesmo, do tipo “não sou eu
que não quero, mas isso não pode acontecer de acordo com o que o judaísmo
prescreve e eu tenho que providenciar para que isso não aconteça”. Aí eu
encontrava com ele, ele encontrava comigo, parecia que eu era a promessa e a
ameaça de morte iminente dele. Como se estar vivo já não bastasse.
Eu
era duas pás de terra sobre meu avô. Uma: não importa o que ele deseja nem no
que ele acredita, o que é dele está superado e será ignorado pelo filho e a
mulher; duas: o neto, que ainda não necessariamente deseja aplacar qualquer
ação ou vontade do avô, já é em si fruto da derrocada dessa tradição, supõem os
pais, ignorável (mais por ser velha e ter que dar lugar ao que vem atrás porque
inclusive atrapalha as direções desse novo troço que se anuncia do que por ser
infundada ou má), ou seja, o neto, quer queira ou não, quer saiba ou não,
existe sendo contra o avô. Eu, sendo a segunda, evocava a primeira e era as
duas.
Claro
que quando ele morreu de fato eu fiquei aliviado. Imagine como ele não ficou.
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