quarta-feira, 19 de março de 2014

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Meu nome era o que meus pais pretendiam fazer pra homenagear o meu avô. Ele não gostou disso porque tava vivo e porque na nossa religião quem tá vivo não pode ser homenageado, a não ser que morra, deixando, assim, de tá vivo, passando a tá morto, que na nossa religião é o estado de existência (que talvez se possa chamar não-existência é bem discutível e, diria, errado) por excelência de alguém homenageável.

Então meu avô não gostou nada da ideia de ser homenageado achando assim que tava implícita certa ideia de meus pais desejando a morte dele. Aí meus pais, assim como meu avô tinha essa questão idiota da religião, meus pais também tinham a deles que era de já que meu avô tava nessa pilha chata de não vou liberar meu nome pra vocês usarem, eles não resolveram, como todos pra quem eu contei isso concordaram que teria sido a coisa mais óbvia e razoável a ser feita, simplesmente falarem ok, ok e darem outro nome. Resolveram insistir.

Tinha uma parada de que eu seria o último filho da família, quer dizer, deles dois (porque era de se esperar que à época da reprodução da nossa geração, minha e do meus irmãos, a nossa prole poderia tranquilamente servir para homenagear meu então possivelmente morto avô. Mas meus pais não só não podiam esperar como deviam fazer eles mesmos agora. Se bem que pensando bem, seria ridículo se eles impusessem que algum de nós dos filhos botasse nos netos deles o nome do nosso avô. Aí nós é que brigaríamos com eles e nossos filhos homens seriam aqueles-que-não-tem-o-nome-do-bisavô, e nós, os-netos-que-não-homenagearam-o-avô), e aí eles queriam porque queriam homenagear o meu avô, o que, pra ser sincero, não vejo muito motivo, ele não é um velho extraordinário ou coisa parecida, mas um cara solitário, religioso e pouco simpático e nada de uma espécie de vida brilhante como uma contraparte compensatória dessa rabugice, do tipo quando falam que sei lá o Ibsen, por exemplo, era hiper ranzinza, mas né, era o Ibsen, então foda-se. Ou o Heráclito. Não, o meu avô era um dos vários de quem eu tava falando quando falava que família é uma merda.

Então quer dizer eu já vim ao mundo num meio duma merda escrota que nego quis botar na minha conta, já quiseram me botar no meio duma rixa maluca com o meu avô antes de eu sair do útero. O que me faz pensar que comigo ele talvez fosse ainda mais rabugento que o normal. Porque claro que os meus pais botaram o nome dele em mim. Isaac. Após todos os argumentos razoáveis e concessivos e diplomáticos eles poderiam simplesmente falar que eles iam fazer o que eles queriam e foda-se. Podem ter ameaçado ele de alguma coisa também, não sei. Não falávamos muito sobre isso. A não ser pra eles mostrarem como era importante lutar pelo que se acha que é certo e como meu avô não sabia o que tava fazendo, como era importante abalar esses enrijecimentos da religião e que ela imiscuía em todos, e sempre terminava num clima conciliatório de somos uma bela família esclarecida e amamos os nossos e homenageamos os patriarcas, e minha mãe acrescentava “até mesmo os rabugentos” e todos riam e o cachorro latia e recebia do meu pai tapinhas nas costelas e ele comentava que até o cachorro achava o vovô rabugento e mais uma vez todos riam. Ou seja, quando eu tive idade pra de fato estranhar tudo isso eu sabia que minha família tava para sempre perdida numa ego trip sinistra. Eu falava ok e ia pro meu quarto.

Agora, por que meu avô se demoveu da convicção dele é que eu não sei. Que aliás por ser de uma onda religiosa e tal nem era tão dele quando uma parada transcendente mesmo, do tipo “não sou eu que não quero, mas isso não pode acontecer de acordo com o que o judaísmo prescreve e eu tenho que providenciar para que isso não aconteça”. Aí eu encontrava com ele, ele encontrava comigo, parecia que eu era a promessa e a ameaça de morte iminente dele. Como se estar vivo já não bastasse.

Eu era duas pás de terra sobre meu avô. Uma: não importa o que ele deseja nem no que ele acredita, o que é dele está superado e será ignorado pelo filho e a mulher; duas: o neto, que ainda não necessariamente deseja aplacar qualquer ação ou vontade do avô, já é em si fruto da derrocada dessa tradição, supõem os pais, ignorável (mais por ser velha e ter que dar lugar ao que vem atrás porque inclusive atrapalha as direções desse novo troço que se anuncia do que por ser infundada ou má), ou seja, o neto, quer queira ou não, quer saiba ou não, existe sendo contra o avô. Eu, sendo a segunda, evocava a primeira e era as duas.

Claro que quando ele morreu de fato eu fiquei aliviado. Imagine como ele não ficou.

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